Brasília além do Plano Piloto
A capital da República deve permanecer como patrimônio da humanidade junto à Unesco, mas corre o risco de ser “engolida” em alguns anos devido à falta de planejamento regional. Um dos problemas é não considerar as cidades em volta da região central
Gastal alerta que a Unesco não vê problemáticas como a questão do transporte público, mas que ele vai sugerir isso à missão
Brasília não corre o risco de configurar na lista de patrimônios ameaçados ou de perder seu título de patrimônio da humanidade. É o que acredita o superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no Distrito Federal, Alfredo Gastal. No entanto, ele alerta que a cidade está “ameaçadíssima” não em seu patrimônio histórico, mas pela falta de planejamento regional. Ele observa que há questões muito sérias e urgentes que devem ser observadas para o futuro da cidade a exemplo da concentração de empregos no Plano Piloto e do precário transporte público.
Após dez anos, Brasília irá receber novamente uma missão da Organização da Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O objetivo da visita é verificar se Brasília está entre os patrimônios ameaçados e se as orientações feitas na última visita foram seguidas, como a de elaborar um plano de preservação da área tombada. Em 1987, Brasília ganhou o título de patrimônio da humanidade por ser um exemplo da arquitetura moderna e por seu projeto urbanístico inovador.
Doutor em arquitetura e urbanismo, Gastal diz esperar que o pessoal da Unesco não tenha uma visão influenciada por um grupo conservador que tem “uma visão absolutamente paralisante de Brasília”. Ele afirma que o patrimônio tombado está preservado, embora às vezes precise de reparos, o que é natural, como vem acontecendo com a Catedral que está em obras.
O superintendente do Iphan lembra que o Plano Piloto foi tombado debaixo de circunstâncias muito claras que se referem ao tombamento de uso. “Cada terreno tem seu uso definido e seu volume. Dentro daquele uso, pode-se construir um volume de tais dimensões e isso está definido pelo Lúcio Costa. Por exemplo, nas superquadras têm que se obedecer aos volumes e aos usos, não pode colocar escritório dentro das superquadras, e o volume são seis pavimentos, e tem que ter pilotis”, explica.
Ele observa que a Câmara Legislativa do DF interfere muito com a sua legislação na arquitetura da cidade porque de vez em quando tenta mudar destinação de área. Outra problemática que deve ser enfrentada é o fato de que todas as alterações na cidade geralmente têm o intuito de melhorar o fluxo de automóveis, o que acabou fazendo de Brasília “uma cidade tombada que se transformou no maior estacionamento do mundo”.
O superintendente acrescenta que é preciso que os governos do DF, o atual e os próximos, tratem da cidade e de seu entorno como uma região de desenvolvimento e não observem Brasília sozinha, como um Plano Piloto isolado. “O Plano Piloto tem 400 mil habitantes e, 50 anos depois, ainda não chegou à sua capacidade de população que é de 500 mil pessoas. Mas, em volta dele tem três milhões de pessoas, com um pequeno detalhe burguês: mais de 70% dos empregos estão dentro do Plano Piloto”, alerta.
Falta de transporte
Gastal reforça que todos os dias essa multidão sai de suas casas e vem trabalhar no Plano Piloto e se depara com um segundo fator gravíssimo que é a falta de transporte de massa “decente” em Brasília. Ele denuncia que aqui predominam duas companhias de ônibus que colocam nas ruas ônibus cerca de 15 anos de uso, quando a vida máxima é de apenas 5 anos.
“Brasília é uma cidade para ter metrô, trem, VLT, para ter investimentos. Tem que parar de construir palácio e museu, isso e aquilo outro. A cidade está cheia de atrações para as pessoas virem no fim de semana, mas não vêm porque vai gastar um dinheirão de passagem de ônibus vagabundo e pode morrer no meio do caminho”.
Gastal alerta que a Unesco não vê essa problemática, mas ele disse que faz questão de colocar a situação para a missão. “Eles têm que cobrar, e nós como cidadãos temos que exigir que o governo tenha como prioridade o planejamento regional”, analisa.
Prioridades
Para o superintendente do Iphan, o primeiro ato do processo de planejamento regional deve ser a descentralização do emprego. “Não pode seguir acumulando nem o federal, nem o local. Tem de começar a descentralizar emprego. Hoje não tem o menor sentido bancos, empresas estatais, os próprios ministérios terem anexos. Hoje, com a informática, se pode ter órgãos estatais na Ceilândia e em todas as cidades-satélites”.
Paralelamente, a segunda prioridade para Gastal tem que ser o transporte público de massa. “É a descentralização do emprego pra valer. Os grupos que só pensam na cidade bonitinha não se dão conta de que a cidade vai ser engolida num curtíssimo prazo se não for feito um governo de qualidade tecnicamente impecável de descentralização, geração de emprego em outras áreas e de transporte de massa, não só vindo para o Plano Piloto, mas também cruzando entre todas cidades. Senão o Plano Piloto vai ser engolido”, alerta Gastal.
O problema do patrimônio da humanidade, segundo o superintendente, está “grudado” com o desenvolvimento da região. “Só se bota teatro aqui para a burguesia que vive aqui, mas na realidade você tem que trabalhar para tudo que está em volta da cidade. Mas hoje o teatro sai a um custo brutal para o bolso das pessoas que vêm para cá. Isso é socialmente injusto, não é democrático”, reflete.
O tombamento permite que qualquer edifício em Brasília possa ser demolido, implodido, e construído outro, desde que se for uma área comercial, seja comercial, tem que obedecer os mesmos princípios. Só não pode ser assim com os bens tombados individualmente como os prédios do Congresso Nacional, Palácio do Planalto, Palácio da Alvorada, etc, estes têm que ser restaurados.
Preservação depende de reorganização dos espaços
Gastal argumenta que Brasília ainda hoje é tratada por alguns como se fosse a Versalhes do século XX (em alusão ao castelo real na França), sendo que não foi desenhada para a nobreza e durante o golpe militar, a cidade ficou praticamente congelada em termos de organização. “Aqui (em Brasília) só tinha a fina flor da burocracia, com exceção de algumas quadras 400, o resto, se tivesse cara de pobre, aí tinha que ir para outro lugar. É um negócio duro, é antidemocrático, mas isso aconteceu praticamente desde o início. É o oposto do que o Lúcio queria. Tantos anos de redemocratização do país e depois de 15 anos de crescimento sério e estável, que continua nesse momento crescendo e com políticas claras. Sobretudo no governo nacional do PT, não se pode admitir que Brasília continue sendo tratada como se fosse o Palácio de Versalhes do século XX”, considera Gastal.
Ele reforça que Brasília é tombada por causa do seu urbanismo, da sua arquitetura, que foram reconhecidos como um bem excepcional arquitetônico, que mereceu o título de bem da humanidade, mas para que esse bem fique preservado tem que mudar as políticas do Distrito Federal. “Não é só ter várias agências de fiscalização, mas é claro que tem que ter uma, mas a solução é, sobretudo, olhar para a cidade como a capital da República, o que muita gente não sabe que é. Se a gente for olhar os jornais nacionais a gente não vê Brasília, não tratam Brasília como a capital da República. Tudo que se referir a Brasília tinha que ser tratado como a capital da República, Brasília é tratada como mais um município”, pondera.
Para Gastal, a situação do Distrito Federal e do seu Entorno é “desastrosa” devido à falta de planejamento regional e à falta de respeito. “Juscelino dizia vai ser a capital, mas hoje ela é tratada pelos próprios habitantes como uma cidade qualquer”.
O superintendente chama a atenção para o fato de as pessoas esquecerem que Brasília é integrante de uma região metropolitana enorme, o Distrito Federal, que tem mais de três milhões de habitantes e ainda envolve o Entorno. “Isto tudo soma três milhões e 200 mil habitantes por aí. Como é que se mantém um desenho cercado de árvores por todos os lados, de bosques, com regras estabelecidas em 1957, quando foi desenhado o Plano Piloto, no começo do século XXI, com essa desordem no Entorno?”, alerta.
Ele observa ainda que o Entorno foi uma formação praticamente espontânea, ou seja, não foi planejada. “Isso começou a existir na ocasião da construção da cidade, e todo o tempo o processo foi de exclusão dos mais pobres. Se você não tinha dinheiro, não tinha lugar no governo, não fosse bonitinho, etc e tal, você tinha que sair daqui”, comenta. No entanto, o superintendente destaca que por algumas razões absolutamente independentes de planejamento Taguatinga, por exemplo, deu certo. “É uma região com todos os confortos de uma cidade, com um desenho maluco, mas é uma cidade muito gostosa e vai muito bem obrigado do ponto de vista econômico. As outras cidades todas, algumas deram certo e estão se ajustando, e tem as outras como Ceilândia, que não é nada mais que um programa de exclusão dos pobres de dentro do Plano Piloto”, analisa.
Fonte:
http://comunidade.maiscomunidade.com...-PILOTO.pnhtml