A bolha dos imóveis começa a estourar no mercado comercial
É verdade, o preço de casas e apartamentos nunca foi tão alto. Mas não é lá que está a verdadeira bolha imobiliária brasileira. Prédios comerciais, shoppings e galpões vazios — é aí que está o problema
- Pouco antes de receber o Prêmio Nobel de Economia, no ano passado, o americano Robert Shiller fez uma viagem a São Paulo. Shiller ganhou fama internacional como uma espécie de caçador de bolhas — aquele fenômeno financeiro marcado por preços que descolam da realidade para depois cair subitamente.
No fim da década de 90, ele escreveu que a obsessão do mercado americano por ações de empresas de tecnologia acabaria mal. Acertou em cheio. Uma década depois, demonstrou que o preço dos imóveis nos Estados Unidos estava beirando a loucura e despencaria logo.
Shiller, que estuda o mercado imobiliário americano há décadas, acertou de novo. Pois, em sua visita a São Paulo, ele analisou o que estava acontecendo com os imóveis no Brasil. Como qualquer brasileiro sabe, faz quase oito anos que o preço de apartamentos e casas nas principais cidades do país sobe sem parar.
Os sinais de exuberância irracional são os mais variados. Um “apertamento” de 35 metros quadrados recém-lançado em São Paulo costuma ultrapassar o valor de 1,1 milhão de reais. No bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro, o metro quadrado dos imóveis mais chiques vale 50 000 reais. Shiller olhou isso tudo, achou que já tinha visto esse filme antes e cravou — é bolha.
Mas é mesmo? O mais famoso caçador de bolhas do mundo achou mais uma? O preço dos imóveis está prestes a desabar? Para começar a conversa, é preciso deixar claro que essas são perguntas impossíveis de responder com precisão. O futuro do preço das coisas é, por definição, incerto.
Em muitos casos, ondas de valorização são seguidas por mais ondas de valorização — já que há boas razões econômicas por trás delas. Por outro lado, uma bolha só se forma porque, até o dia em que estoura, há uma espécie de consenso em torno dos bons “fundamentos” da alta nos preços.
A saúde do mercado imobiliário interessa, por razões óbvias, a milhões de brasileiros. Saber se estamos ou não em meio a uma bolha é, portanto, uma das discussões econômicas mais importantes do país. Mas os números mostram que Shiller atirou no que viu e acertou no que não viu. Há, de fato, uma bolha imobiliária no Brasil. E ela já começou a estourar. Mas não onde Shiller imagina.
Os maiores símbolos da bolha imobiliária brasileira não são quitinetes de 1 milhão de reais, mas prédios comerciais vazios, shopping centers novos às moscas e galpões industriais sem uso. A bolha brasileira, em suma, está localizada no mercado comercial, e não no residencial.
Durante a última década, houve nesse segmento uma espécie de fúria construtora. Em 2012 e 2013, os lançamentos somaram 25 bilhões de reais, maior volume da história. Cidades onde só havia edifícios acanhados, como Vitória e Recife, passaram a receber empreendimentos modernos. Um marco do oba-oba nesse segmento é o megaprojeto de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro.
Animadas pelas obras de reurbanização prometidas pelo governo, incorporadoras nacionais e estrangeiras disseram que lançariam 1 milhão de metros quadrados de escritórios na região, o que corresponde a dois terços da disponibilidade atual de imóveis comerciais em toda a cidade. Só o bilionário americano Donald Trump se comprometeu a erguer cinco torres de 38 andares ali.
A promessa, em todos os casos, foi a mesma. O crescimento da economia e a chegada de novas empresas multiplicariam a demanda por áreas de escritórios. Quem não aproveitasse para construir perderia a maior oportunidade da história no Brasil. Deu-se o mesmo nos dois outros principais segmentos do mercado imobiliário comercial — os shoppings e os galpões.
Também nesses casos a perspectiva de boom econômico levou a um recorde de construções. A área de galpões disponível no país cresceu nada menos do que 120% em apenas três anos.
São hoje 8,1 milhões de metros quadrados para estocar a produção industrial brasileira. Também nunca se construiu tanto shopping center. Até mesmo cidades com 200 000 habitantes, como Sobral, no interior do Ceará, e Arapiraca, em Alagoas, ganharam o seu.
Obras na alta, entrega na baixa
Construir imóveis comerciais é coisa de quem tem coração forte. Faz-se o projeto num país. Entrega-se a chave em outro. A torcida é sempre para que o segundo seja melhor do que o primeiro. Mas, no caso brasileiro, aconteceu o contrário. Os empreendimentos que estão ficando prontos hoje foram desenhados no país do pibão, mas chegam no país do pibinho.
Os efeitos desse descompasso são visíveis: há imóveis vazios, e os preços estão desabando. Segundo um levantamento da consultoria imobiliária Cushman & Wakefield, a taxa de escritórios vagos subiu de 13% para 18% no último ano — é o percentual mais alto desde 2005.
Há prédios inteiros vazios ou com meia dúzia de inquilinos. Um caso emblemático é o edifício Pátio Malzoni, erguido num dos terrenos mais caros de São Paulo, na avenida Faria Lima. Quando foi inaugurado, em 2012, tinha o metro quadrado mais caro do país para aluguel.
O valor pedido era 240 reais. Mas, até hoje, só há locatários em uma das torres. A outra, de 19 andares, está vazia. Seus donos, um grupo de bilionários árabes, dizem que só vão alugar quando o preço voltar a subir — hoje, só há interessados em pagar 180 reais por metro quadrado.
Quem não pode se dar ao luxo de esperar por dias melhores está tendo de aceitar preços mais baixos. Em média, o aluguel comercial caiu 15% em São Paulo, 10% no Rio de Janeiro e 7% em Recife de 2012 a 2013. Na região de Alphaville, no entorno da capital paulista, um quarto dos imóveis está desocupado. Os donos de salas comerciais estão fazendo qualquer negócio para ocupá-las.
“O que está acontecendo no mercado imobiliário comercial é consequência da desaceleração da economia, que está se espalhando por mais setores. A indústria não foi bem na década passada, e agora começa a haver problemas no setor de serviços”, diz o economista Marcos Lisboa, vice-presidente da escola de negócios Insper.
Num cenário de expansão, mais empresas planejam investimentos e buscam imóveis comerciais maiores ou mais adequados à sua estratégia. Quando as perspectivas pioram, o que não saiu do papel geralmente vai para a gaveta, e a demanda por prédios costuma cair rapidamente.
Em nenhum mercado os sinais de uma bolha estourando são tão claros quanto no de shoppings. O setor vive os efeitos de uma expansão caótica na última década. A premissa que levou a essa expansão era realmente tentadora. Os brasileiros compram menos em shoppings do que os consumidores de outros países emergentes e desenvolvidos.
De acordo com um relatório do banco UBS, 21% das vendas no Brasil acontecem em shoppings, ante 38% no México, 56% nos Estados Unidos e 65% no Canadá. Portanto, concluíram os empresários do setor, há espaço para mais empreendimentos do tipo.
“Muitas cidades médias receberam três shoppings ruins em vez de um bom. Todos achavam que seu projeto era melhor, atrairia mais gente, mas um acabou roubando o público do outro”, diz Henrique Cordeiro Guerra, diretor executivo da Aliansce, uma das maiores administradoras de shoppings do país.
Como os varejistas não estão dispostos a pagar essa conta, o resultado é que shoppings têm sido inaugurados sem lojas que garantam um movimento mínimo. Em 2013, só 14 dos 38 empreendimentos inaugurados tinham mais de 85% de ocupação.
Há casos dramáticos, como o Pátio Arapiraca Garden Shopping, no interior de Alagoas, que abriu com 28 das 180 lojas, e o North Shopping Jóquei, de Fortaleza, inaugurado com 25 das 223 lojas previstas.
Sorocaba, a 100 quilômetros de São Paulo, se tornou um símbolo dos excessos desse mercado: apenas de setembro a novembro do ano passado a cidade, de pouco mais de 580 000 habitantes, recebeu mais três shoppings, que se somaram aos quatro já existentes.
Diferentemente do que começa a ocorrer no exterior, onde mais shoppings vêm oferecendo atrações variadas aos visitantes, aqui a oferta ainda é basicamente de lojas, restaurantes e cinemas. O maior shopping do mundo, em Dubai, nos Emirados Árabes, tem um aquário externo com mais de 30 000 animais marinhos.
A ideia é atrair os turistas que vão passear por causa do aquário para as lojas. Naturalmente, as ações das empresas brasileiras do setor estão caindo — em alguns casos, mais de 40%. Assustada com a burocracia e o aumento da concorrência, a americana Simon, maior empresa de shoppings do mundo, suspendeu uma parceria com a brasileira BR Malls e adiou os planos de operar aqui.
O que torna o problema ainda mais complexo é a perspectiva de mais e mais inaugurações de prédios, shoppings e galpões nos próximos anos. De novo, é gente que começou projetos numa realidade e não pode simplesmente desistir deles. O jeito é entregar e se adequar ao novo cenário.
O número de prédios comerciais a ser entregues em 2014 deve ser equivalente ao do ano passado. Com isso, a taxa de vacância continuará subindo. Segundo a gestora de recursos Rio Bravo, há dois cenários possíveis, dependendo do desempenho da economia. Na estimativa mais otimista, a taxa vai alcançar 20% neste ano e 21% em 2015.
Na pessimista, a previsão é que fique em 22% em 2014 e 26% no ano seguinte. Seria um recorde histórico. No setor de shoppings a situação também é crítica. Estão previstas 43 inaugurações para 2014, novo recorde. Quem pode pisa no freio. Até seis meses atrás, estava prevista a construção de mais 1,4 milhão de metros quadrados de galpões neste ano.
O número caiu para 1 milhão de metros quadrados, segundo a consultoria Colliers. “Havia de fato um excesso nesses mercados, e a correção de preços no último ano tornou as coisas mais razoáveis”, diz André Freitas, gestor de fundos imobiliários do banco Credit Suisse Hedging-Griffo. “A quantidade de imóveis vazios deverá crescer até 2015, então é possível que os preços caiam ainda mais.”
Um mercado cíclico
O mercado imobiliário comercial é cíclico — algo natural, uma vez que acompanha os altos e baixos típicos de uma economia de mercado. No início da última década, houve uma queda brusca no preço dos aluguéis, o que vitimou empresários como o gaúcho Rafael Birmann, um dos grandes construtores do país (sua empresa tinha 400 funcionários e hoje tem 20).
O bilionário Donald Trump pediu falência nada menos do que quatro vezes — e sempre voltou a construir assim que o mercado renasceu. Claro, há bolhas e bolhas. Como se sabe, a última euforia generalizada no setor imobiliário americano derrubou a economia mundial.
Naquele caso, o que potencializou o problema foi o excesso de dívida envolvida. Tanto donos de casas quanto construtores de prédios tomaram dinheiro demais emprestado de bancos.
Quando o mercado virou, em 2008, não tinham mais dinheiro para pagar suas dívidas — criando uma bola de neve que arrasou os bancos e levou a economia como um todo para a recessão. A cidade de Detroit, que já não vinha bem antes da crise imobiliária, pediu falência depois dela: hoje, há quase 80 000 imóveis vazios na cidade.
Nossa bolha imobiliária terá efeitos semelhantes? Felizmente, não corremos esse risco. O volume de dívida contraída pelas empresas que constroem imóveis comerciais é relativamente baixo.
Do total de crédito concedido pelos bancos às empresas do setor imobiliário, apenas 18% vão para as companhias que constroem escritórios, galpões e shoppings (o restante é direcionado ao segmento residencial).
O crédito imobiliário equivale a 75% do PIB americano. No Brasil, a apenas 8%. Isso não quer dizer que a crise atual passará sem consequências. As varejistas que operam em shoppings estão perdendo dinheiro com o movimento baixo.
Em fevereiro, as empresas de shoppings e as varejistas se reuniram num evento com 400 pessoas num hotel em São Paulo, para tentar chegar a um “acordo de paz” e repensar a estratégia daqui para a frente. Milhares de investidores estão pagando a conta pelos excessos do setor.
Em cinco anos, o número de fundos imobiliários disponíveis no Brasil triplicou. Esses fundos são lastreados em imóveis que recebem aluguéis e, há três anos, eram propagandeados pelos bancos como uma opção segura de investimento. O total de cotistas saiu de 20 000 em 2011 para 104 000 em junho de 2013. Atualmente, quase 90% desses fundos estão no vermelho.
É o caso do Cidade Jardim Continental Tower, que investe numa torre comercial ao lado do shopping Cidade Jardim, em São Paulo, e desvalorizou quase 50% em 12 meses. Mais de um terço do prédio está sem inquilinos.
O mercado imobiliário é um espelho da atual situação econômica brasileira. Um segmento (o comercial) depende de empresas investindo, confiança no futuro da economia, sensação de que as coisas vão melhorar. Como se viu, esses são artigos um tanto raros no Brasil de hoje. Mas o outro segmento (o residencial) parece estar situado em outro país.
Nele, o que importa é a combinação de desemprego baixo com crédito em alta. Nesse país, tudo vai bem. O crédito para a compra de imóveis residenciais dobrou nos últimos três anos, e pouca gente espera que vá parar de crescer tão cedo.
O principal motivo para isso: esse tipo de empréstimo é um baita negócio para os bancos, que conseguem manter o relacionamento com os clientes por duas, três décadas — e, em caso de calote, podem, atualmente, retomar o imóvel com relativa facilidade. Isso ajuda a explicar por que o preço de casas e apartamentos continua crescendo enquanto o resto do mercado cai.
Quanto tempo o mercado residencial resistirá? O economista Eugene Fama, que dividiu o Nobel com Robert Schiller, gosta de provocar seu colega ao lembrar que ele falava da bolha imobiliária americana anos antes do estouro.
Segundo a maioria dos especialistas, o mais provável daqui para a frente é que o preço dos imóveis residenciais pare de subir de forma tão acelerada e passe a acompanhar mais de perto a taxa de inflação. Mas, de novo, é o consenso de que tudo está bem que leva os preços a subir mais do que devem.
Em algum momento os preços cairão. Nessa hora — não importa se daqui a um, cinco ou dez anos —, lá estará Robert Shiller, o caçador de bolhas, dizendo: brasileiros, eu avisei.
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